Recentemente fiz uma crônica ficcional da visita de um cidadão ao adro do antigo convento franciscano: Meu encontro com São Francisco de João Pessoa ─ PB, como um exercício preliminar para discutir, dialeticamente, sobre uma questão suscitada numa reunião semipresencial com técnicos oriundos de entidade de preservação – a proteção dos azulejos figurativos dos nichos no Centro Cultural São Francisco – CCSF, musealizando os originais e aplicando-se réplicas no lugar.
Naquela crônica, registrei o seguinte diálogo do narrador com uma pessoa:
[...] aplicando novos azulejos numa parede, disse que tudo estava em trabalhos de conservação. Perguntei pelos painéis, porque vi que ales haviam sido removidos para restauro. Ela confirmou. Disse que voltarão ou não para os nichos, restaurados ou consolidados, e que era pensamento deixar os originais dentro do museu por segurança. Mas, o que vão colocar no lugar? Perguntei. Réplicas, respondeu, explicando que está em discussão pelo órgão de preservação se isso deve ou não ser feito. Calado fiquei, agradeci a atenção e seguir avante.
Agora desejo tergiversar sobre a questão de se retirar objetos, e até mesmo construções, de um lugar e levá-los para outro, musealizando-os, utilizando uma estreita relação com a retórica, identificar argumentos e ideias na busca de uma solução/decisão com vistas a assegurar a proteção azulejos figurativos dos nichos do adro de São Francisco de João Pessoa.
Começo com a busca pelo entendimento do que é e para que serve a musealização. Essa prática tem raízes muito antigas, perpassando por várias culturas ao longo da história. Desde a sacralização de objetos que precisavam ser preservados e expostos com solenidade e segurança, até objetos exóticos ou de alto valor oriundos de conquistas. É curioso saber que no Renascimento, segundo Gilles Banderier, existiam os quartos, gabinetes de curiosidades ou de encantamento do mundo, onde se guardavam e expunham objetos raros ou estranhos (animais, vegetais e minerais) além de objetos relacionados à geologia, etnografia, arqueologia, relíquias religiosas ou históricas, obras de arte e antiguidades oriundos das explorações e descobrimentos dos séculos 16 e 17. No século 18, os Habsburgos na Áustria e os Bourbon na França organizaram suas coleções reais e imperiais, formando a base posterior para muitos museus nacionais modernos. O século 19, com as expedições arqueológicas, patrocinadas por instituições acadêmicas e governos europeus, trouxe descobertas de artefatos antigos de priscas eras, particularmente do Egito, que foram então exibidos nos museus. Nessa época houve um crescente movimento de criação de museus públicos como instituições educacionais e culturais abertas ao público em geral, interpretando e promovendo a educação e a preservação dos bens culturais. No século 20, até templos, obeliscos, além de inúmeras múmias foram musealizados nos principais museus da Europa e dos Estados Unidos.
Seja consultando enciclopédias como a Barsa, o Mirador, o Lello, todas impressas, até as atuais digitais, e mesmo a OpenAI, verifico que as atividades de se musealizar objetos evoluiu muito desde as simples práticas de colecionismo, como depósitos passivos, que evoluíram para instituições dinâmicas, que desempenham múltiplas funções na sociedade. Como centros de educação, cultura, e engajamento social, os museus contribuem significativamente para a preservação da memória, promoção da aprendizagem, melhoria da qualidade de vida, e fortalecimento da cidadania. Este papel ativo permite que essas instituições continuem relevantes e necessárias, adaptando-se às mudanças sociais e tecnológicas e atendendo às necessidades de uma sociedade cada dia mais exigente por conhecimento.
Quando adentro num museu, como um curioso para saber como se desenvolvem as práticas e as técnicas de identificação, coleta, preservação, interpretação e exposição de objetos para o público, me deparo com a questão da segurança como um entre os pilares de sua sustentação. Evidentemente que, sem as devidas proteções e cautelas, os museus não poderiam garantir seus acervos e manter a confiança do público ou assegurar a continuidade de suas ações. A prevenção de danos, furtos, vandalismo, e demais riscos associados, também asseguram a integridade do acervo e a sua continuidade exitosa.
Isto é um fato válido na construção dos argumentos que procuro para explicitar melhor o problema - fulcro da questão levantada, e encontrar uma solução que concilie as antinomias – a necessidade urgente de se resguardar os azulejos figurativos dos nichos de danos por vandalismos!
Na construção da minha retórica é necessário compreender o Porquê do decaimento dos centros urbanos nas cidades brasileiras e a correspondente ascensão da violência e depredações das áreas urbanas das cidades no Brasil. Aliás, porque não dizer do Ocidente. Verifico que nas do Oriente, e são muito poucas as notícias que chegam desse assunto, para avaliar se elas enfrentam o mínimo das situações que aqui ocorrem.
Pelos anos já vividos, sou uma testemunha de época que se vivenciava a segurança urbana, quando só existiam hábeis larápios (era assim que eram chamados os “descuidistas”, “golpistas”, “batedores-de-carteiras”). Desses ficaram famosos casos publicados em jornais de vigaristas que conseguiam vender, para alguns coitados, o Cristo Redentor, o Viaduto do Chá que seria demolido e era uma grande oportunidade de se comprar todo aquele aço [...]. Eles agiam identificando tolos, incautos e desprevenidos. Histórias como essa transformaram-se em comédias da vida brasileira de então, como "Sai de Baixo" (1956, J.B. Tanko), “O Homem do Sputnik" (1959, Carlos Manga). E que, até hoje são relembradas em alguns remakes do tipo lançado pela Netflix “Os Salafrários” (2021, Pedro Antônio). Não eram muitos, não se identificavam com facilidade, pois se misturavam entre as pessoas bem vestidas e falantes.
Entretanto, a partir dos primeiros anos da década de 1980, surgiram figuras nas áreas centrais das principais cidades brasileiras (Recife, uma delas) que ficou conhecida por “trombadinhas”. Estes eram menores de idade, crianças de rua, que trombavam com transeuntes em vias de grande movimento, particularmente com pessoas idosas para levarem bolsas, sacolas. Esse fenômeno era trazido a público com estardalhaço, e imputava na intensa migração para os centros urbanos e pela pobreza generalizada o aumento do número de crianças e adolescentes vivendo nas ruas e se envolvendo em atividades criminosas. Mudanças na política de segurança pública, com adoção de posturas humanistas em relação aos menores infratores, em vez de repressão efetiva foi, e ainda, é uma abordagem controversa entre o público citadino em geral, gerando debates acalorados.
Nessa época, embora já existisse em São Paulo um shopping center desde o ano de 1966 (Iguatemi) foi a construção de novos com perfis extremamente atraentes para o público (Recife, 1980; Eldorado/SP, 1981), que trouxeram grandes áreas com diversificado mix de lojas, lazer e entretenimentos como cinemas e áreas de diversão para crianças, algo menos comum na galerias comerciais da época, praça de alimentação com ampla variedade de opções gastronômicas, enorme estacionamento, rapidamente se transformaram em local para eventos e atividades culturais e de lazer, sendo a segurança um grande fator para sua crescente e exponencial popularidade. De lá para cá, o crescente surgimento de centros comerciais assemelhados nos bairros, o decaimento do comércio nas áreas centrais das cidades só tendeu aumentar. Sem dúvida que essa pode ser uma visão reducionista sobre as deteriorações socioeconômico e cultural dos centros urbanos, pois seria extensivo assinalar todos os fatores complexos que interagem no decorrer das décadas, contribuindo para o aumento das degradações e abandonos dos centros urbanos brasileiros ─ urbanizações rápidas e desordenadas, conurbações, gentrificações, deficiências na infraestrutura e nos serviços públicos, sucessivas crises econômicas, substituição de mão-de-obra por autômatos, desemprego, expansão do tráfico de drogas, abrandamentos na Justiça Criminal, influência da cultura da violência, alterações significativas de hábitos de comércio pela pandemia (Covid).
A situação atual do centro da cidade de João Pessoa não é tão diferente das demais cidades brasileiras, sendo sempre um sério risco deambular pelas ruas sem as cautelas básicas recomendadas pelas autoridades policiais, tais como: não exibir objetos de luxo, particularmente joias, câmeras fotográficas, celulares modernos, e até bolsas e sapatos de grife; evitar transitar por becos e ruelas; não andar sem que seja necessário pelas ruas após o fechamento do comércio. Na madrugada, prédios públicos e privados são cenários de disputas de demarcações de territórios por gangues através das marcas deixadas pelas pichações. E, quando ficam desocupados ou sem as precauções de severa segurança, são logo pilhados por vândalos, moradores de rua, usuários de drogas e tutti quanti.
Colocados esses fatos, registro dois outros que devem ser examinados:
Primeiro: trata-se da relevância histórica-artística dos azulejos figurativos da Paixão de Cristo, aplicados nos nichos do adro franciscano. São cerâmicas portuguesas do século 18 que desempenhavam a função educativa com narrações bíblicas e instruções catequéticas. Representações que mostram a paixão dolorosa de Jesus. As cenas dos Suplícios, da Crucificação e da Ressurreição, com imagens dramáticas, tinham um forte impacto emocional sobre as pessoas. Os painéis não só contavam a história de Jesus, mas buscavam também inspirar empatia, devoção e uma conexão pessoal com as narrativas, a tal ponto de as pessoas se identificarem com as cenas, e até passarem a agredirem e mutilarem as figuras dos algozes, como de fato, literalmente foi feito.
Segundo: os azulejos portugueses vindos ao Brasil na segunda metade do século 18, eram frágeis de origem em razão de as grandes demandas da Colônia terem ocasionado produções nas olarias sem maiores cuidados nos preparos das chacotas e dos vidrados. Acrescente-se a questão dos transportes marítimos que deixavam as caixas com as cerâmicas enxarcadas de água salgada. Assentados em paredes externas, expostos ao intemperismo tropical de proximidade aos oceano e manguezais, sujeitos às percolações e infiltrações, os azulejos não tardaram entrar em processo de decaimento.
Uns painéis mais que outros tiveram degradações e perdas com causas diferenciadas e incertas. Neles foram detectadas perdas em rostos por ações diretas de agressões deliberadas nos algozes de Cristo; por danos de desagregações e pulverulência nas chacotas/vidrados devido aos processos de solubilidade/precipitação salinas; nos vidrados por antrópicas de pichações; e, de perdas de azulejos por situações incertas (roubo?). Seja como for, todos os seis silhares foram removidos (março-junho/2024) para serem consolidados e restaurados.
Neste momento, surgiu a proposta de se musealizar os seis painéis no Centro Cultural com o argumento de que, retornando-os aos nichos de origem, três questões necessitam superações: primeiro, o retorno às intempéries adversas; segundo, a eliminação das ações salinas; e terceiro, a sujeição aos diversos tipos de vandalizações.
A primeira adversidade não há como resolver. Em relação à segunda questão, as ações salinas podem ser reduzidas sensivelmente com a aplicação dos azulejos sobre placas sintéticas, isolando-os das umidades das alvenarias/cantarias e, empregando-se no assentamento/rejuntes, argamassas de base acrílica. E à exposição aos riscos de vandalismo, terceiro problema, a inserção de vidro laminado/blindado já se demonstrou contraproducente. Evidentemente que, a existência de câmeras de monitoramento pode reduzir algumas ações, mas não inibem gangues de jovens que buscam desafios cada vez mais ousados para deixar as marcas das tribos urbanas a que pertencem.
Então, quais as objeções que podem ser levantadas por técnicos para se musealizar os azulejos originais, deixando-se réplicas cerâmicas nos nichos, cuja percepção os transeuntes leigos não saberão distinguir?
Vou levantar dois argumentos contrários à uma tomada de decisão que foram, basicamente, trazidos na reunião mencionada:
Incialmente, embora a musealização com a substituição dos azulejos originais por réplicas possa parecer uma medida lógica para preservá-los, questionou-se essa prática alegando-se a questão da autenticidade, como um atributo intrínseco dos bens de valor histórico-artístico. A remoção das peças originais de seus locais de origem pode diluir as conexões históricas e culturais com o ambiente em que foram concebidas e são apreciadas há séculos. A percepção de se estar diante de uma cópia, por mais fiel que seja, pode reduzir o impacto emocional de empatia, afastando visitantes e diminuindo o valor educativo e inspirador que as obras de arte originais proporcionam. Outra alegação é que a população local e usufrutuária dos espaços do antigo convento franciscano da Paraíba deve ser consultada em escuta pública. Ouvir a comunidade é um fator essencial no processo de preservação do patrimônio cultural. Envolver os moradores locais leva-os um senso de pertencimento e responsabilidade, crucial para a sustentabilidade das ações de preservação; a participação comunitária confere legitimidade ao processo decisório.
Objetando ipso factos essas premissas, afirmo que há duas maneiras de se analisar a questão da “autenticidade”. Uma dá-se em relação aos antigos azulejos em si, isto é, à materialidade de cada um – aí observadas as chacotas, os desenhos, os vidrados, as aplicações, decaimentos. Outra, a imaterialidade que eles carregam, isto que é denominado o genius locci ou a identidade, a essência que emana deles e se impregna no observador. Na primeira, a proposição de se garantir a integridade e, consequentemente, a autenticidade material dos azulejos é assegurada proporcionalmente às condições adversas do estado de conservação a que eram submetidos e às ações de consolidação e restauro que serão realizados. Pelo outro ângulo, o estilo, as emoções e as técnicas do oleiro e do artista original, estas não serão objeto de intervenções. Neste sentido, a conduta adotada para as áreas de perdas é a amenização das lacunas com a aplicação de cores/tons equidistantes dos trechos circunvizinhos com a técnica do sfumato.
Sobre a questão de se ouvir a comunidade, alguns especialistas preferem escutá-las antes de apresentar suas opiniões, pois essa abordagem permite lastrear suas decisões não apenas na expertise técnica, mas também nos valores e expectativas da população local. Multo justo, sem dúvidas. Entretanto, a capacidade de um público leigo deliberar sobre a conveniência de musealizar os azulejos em risco é limitada, seja pela falta de conhecimentos técnicos ou pela ausência de compreensão aprofundada dos valores culturais e históricos que eles comportam. É certo, no entanto, a participação pública, orientada num trabalho acadêmico, pode enriquecer o processo de tomada de decisão, garantindo que as escolhas feitas reflitam tanto o conhecimento técnico quanto os valores culturais da comunidade. Portanto, é essencial se encontrar um equilíbrio entre a expertise dos profissionais e a contribuição do público para assegurar a preservação eficaz dos azulejos.
O fulcro da questão retorna à necessidade de se superar a sujeição dos azulejos aos diversos tipos de vandalizações. A proposta de se musealizar continua em válida. Mesmo que crie uma falsa sensação de segurança. Porque, embora o CCSF ofereça ambientes controlados, eles não estão isentos de riscos com incêndios e falhas de segurança que podem igualmente comprometer a integridade dos silhares. Transferir essas peças para um novo ambiente não elimina completamente os perigos, apenas os transforma em nível mais aceitável até que se restabeleçam a seguridade urbana minimamente aceitável.
No contexto da atualidade, a decisão de musealizar os azulejos e substituí-los por réplicas se apresenta como uma estratégia eficaz e necessária para se garantir a integridade e a longevidade desse tesouro cultural paraibano. Este texto argumentativo defende essa prática, apresenta alegações baseadas na preservação desses bens. Poderia ter enveredado pela oportunidade única para a educação do público sobre a importância de se garantir a proteção dos bens culturais, desse patrimônio azulejar. No CCSF, a exposição dos silhares originais será acompanhada por informações detalhadas sobre sua história, contexto e técnicas utilizadas. Essas informações enriquecerão a experiência do visitante, proporcionando um entendimento mais profundo e apreciativo das obras. Escolas e o público em geral, ficarão sensibilizados sobre a importância da preservação. Além das visitas guiadas, palestras e oficinas interativas, incentivarão a participação ativa dos interessados e dos visitantes.
As réplicas vão garantir a reprodução exata dos detalhes dos azulejos, traduzindo literalmente as intervenções do futuro restauro. Serão utilizados azulejos cerâmicos novos nas mesmas dimensões, sendo usada a técnica de sublimação para reprodução as imagens. Os materiais são duráveis e resistentes às condições climáticas adversas (sol, chuva e poluição), podendo ficar expostas ao ar livre sem os mesmos riscos associados. Além disso, caso uma ou mais réplicas sejam vandalizadas, o custo de substituição é significativamente menor do que o custo de restauração do azulejo original, tornando essa prática economicamente viável e sustentável. As réplicas permitiram que o público interaja com as obras no contexto original do adro, ampliando a experiência estética e histórica ao adentrar no CCSF e receber todas as informações sobre o porquê da existência dessa situação.
Jorge E. L. Tinoco
Crônica, 3 jul. 2024
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